DA CANTORIA CONVENCIONAL
AO FESTIVAL DE VIOLA
Raízes da cantoria
A poesia popular, verdadeiro pano de fundo da cantoria, tem suas raízes na França. Segundo os pesquisadores, a poesia popular começou a florescer naquele país, com maior realce, por volta do século XI. Adentrou no Brasil, no meado do século XVII, através da fusão da poesia local portuguesa com a trova dos poetas franceses, alojando-se de forma mais acentuada no Nordeste, principalmente nos estados da Paraíba, Pernambuco e Ceará. Foi aí que coube ao Brasil o privilégio do aparecimento do legítimo cantador de viola.
Cantoria do passado
Naquela época, até início do século XIX, a cantoria era realizada por um só repentista, isto porque era difícil o meio de comunicação e impossível se tornaria reunir dois cantadores do mesmo nível.
A primeira cantoria, realizada com dois cantadores, que teve registro na história da arte popular, aconteceu em 1870, na vila de Patos, no estado da Paraíba, com os repentistas Inácio da Catingueira e Romano do Teixeira, no local denominado Casa do Mercado. Essa cantoria foi toda em desafio e durou uma semana inteira. Os cantadores repousavam durante o dia, arrumando idéias, sem contacto entre si, para à noite se debaterem. No final da semana, numa avaliação pelo povo que compareceu à disputa, não houve vencedor, apenas o cantador Romano do Teixeira se deu por rendido em função do cansaço.
A partir daí, apesar das dificuldades de acesso e de comunicação, começou a cantoria a dois, cuja finalidade era o embate para um cantador vencer o outro. Por isto, o violeiro, a convite de admiradores, enfrentava viagens longas, preparando idéias, para descarregar no companheiro, com o fim de vencê-lo na arte.
As cantorias duravam noite inteira, e o cantador vencido emborcava a viola, como gesto de demonstrar à platéia que se considerava derrotado. Os assuntos eram os mais variados possíveis, porém giravam, principalmente, sobre ciência, história sagrada, contos religiosos etc. O cantador vencido não tinha direito ao dinheiro apurado na cantoria, ficando toda a quantia com o vencedor.
Essa forma de cantoria não era vantajosa e, portanto, angustiante, isto porque um cantador de renome poderia, em determinada região, perder toda sua fama em uma noite de cantoria, desperdiçando todo o trabalho de organização de idéias, de estudo e de pesquisa, além da frustração, quando do retorno à sua terra, de ter que falar da derrota para amigos e familiares.
Por outro lado, eram essas vitórias que davam nome aos cantadores, que passavam a serem chamados pelos fazendeiros para encontros marcados, com muita antecedência, com o fim de ser feito o confronto. Cada um dos dois cantadores convidados para a cantoria não sabia quem seria o seu parceiro, passando a conhecê-lo somente no momento da apresentação. Mesmos chagando um dia ou dois antes da cantoria, os repentistas permaneciam incomunicáveis, em áreas isoladas.
O repentista vencedor da batalha colocava nas cravelhas da viola uma fita colorida como forma de ir colecionando as vitórias da arte.
Os cantadores daquela época eram pouco letrados, mas em face de sua aguçada inteligência se tornavam profundos conhecedores da ciência e dos demais temas que interessavam ao público de cantoria.
A cantoria de hoje
Hoje, com a modernização dos tempos, com o rádio, com a facilidade do transporte, o fácil acesso à escola por parte dos cantadores, a cantoria ganhou nova roupagem e, por conseqüência, novo conceito.
São várias as definições que os estudiosos da atualidade dão à cantoria. Pegando um dos conceitos mais simples, pode-se dizer que – cantoria é a apresentação, sem disputa, sem luta, sem duelo, de dois repentistas ou poetas populares, a convite de um interessado para uma platéia por este escolhida.
Assim, tirando nossas conclusões – cantoria é o momento em que se encontram presentes cantador, viola e público, com o ânimo de apresentação.
Apesar de se dizer, sem duelo, existe o momento da cantoria em que a platéia geralmente pede o famoso desafio, que é um gênero no qual os repentistas se debatem em forma de gracejo, engrandecendo-se e apontando defeitos entre si, sob os acalorados aplausos do povo presente, tudo terminando sem deixar mágoa ou qualquer rancor.
Os cantadores de hoje são homens de estudo, bem informados e atualizados com os acontecimentos do mundo, isto porque a platéia de cantoria também está bem instruída e solicita, nos eventos, os mais variados temas, principalmente da atualidade, como: política, futebol etc, além de fatos sociais e outros que envolvem a lei da natureza.
Muitos cantadores da atualidade têm curso superior, há deles até com mais de uma formatura, preferindo sempre as áreas de pedagogia e direito. Então, para o mundo de hoje, não é somente conduzir uma viola para se dizer cantador profissional, é preciso que se preze, prime pela arte e assuma com responsabilidade seu papel perante a sociedade que faz apologia ao verso.
A cantoria, por ter brotado inicialmente no meio rural do nordeste, com difícil evolução, ainda não é reconhecida por grande parcela da população brasileira, sofrendo ainda acentuada discriminação no mundo artístico.
No entanto, merece destaque o avanço que teve a cantoria no Nordeste, quando o cantador já tem abundante acesso ao rádio e até à televisão, com apresentações em clubes e teatros, inclusive, sendo tema de discussão em algumas escolas.
Tipos de cantoria
Existem vários tipos de cantoria, podendo-se enumerar: a cantoria convencional, a cantoria de compadre, a cantoria de pé-de-parede, a cantoria especial e, agora, a cantoria didática.
A cantoria convencional que é a mais tradicional, é aquela em que os repentistas são solicitados para fazerem suas apresentações para o público da vizinhança de quem os convida, acontecendo geralmente nas residências do campo.
Neste tipo de cantoria existe o momento da bandeja, que é a paga dos ouvintes aos cantadores, que se desata com o chamado elogio. O elogio tende a desaparecer na cantoria moderna, pois a platéia já prefere pagar espontaneamente aos poetas, para que a apresentação se desenvolva com melhor conteúdo, aproveitando o tempo para pedido dos diversos gêneros que a arte hoje oferece. Cantoria dessa espécie já ocorre com freqüência em residências urbanas e em pontos comerciais.
A cantoria especial, como o próprio nome diz, ela é realizada em circunstâncias especiais, como, por exemplo, em festa de renovação, batizado, aniversário, casamento, inauguração de residência etc. Às vezes, tem seu preço ajustado; às vezes, não. No meio urbano, esse tipo de cantoria também acontece com freqüência, porém em data comemorativa e festiva, ou inauguração de obras, abertura de vaquejada, festa de padroeiro etc, sob organização de escolas, instituições ou autoridades municipais, e tem como local os clubes e centros sociais urbanos.
A cantoria de compadre é aquela que, independentemente de convite, o cantador anuncia pelo rádio sua passagem por determinada região e pede para alguém daquela localidade organizar uma apresentação.
A cantoria de pé-de-parede é rápida apresentação de uma ou mais dupla, geralmente se revezando, que acontece após a realização de festivais, a pedido e escolha dos apologistas que se fizeram presentes ao evento maior.
A cantoria didática tem criação recente. É aquela em que a platéia é instruída sobre cada gênero a ser apresentado pelos repentistas e tem como finalidade alcançar um público que não convive freqüentemente com a arte dos cantadores. Esse tipo de cantoria foi uma iniciativa dos poetas Zé Fernandes, Auderi Júnior e Pedro Ernesto Filho, este último, advogado e membro da Academia dos Cordelistas do Crato. A primeira cantoria desta espécie aconteceu na cidade de Mauriti, estado do Ceará, no primeiro sábado de junho de 2003, no clube Pingo d’Água, com os cantadores Levi Bezerra e o próprio Zé Fernandes, sob a didática de Pedro Ernesto e Auderi.
DO FESTIVAL DE VIOLA
Conceito
Festival de cantador, também chamado festival de viola, é o encontro de repentistas para classificação de duplas na disputa por troféus, que vão do primeiro ao terceiro lugar. No festival tradicional, todas as duplas recebem cachê, variando o valor em face da classificação.
O festival, em regra geral, realiza-se em uma só noite, mas existem os grandes festivais, chamados congressos, que duram três noites, com eliminatórias.
No festival simples podem concorrer até seis duplas de cantadores, enquanto nos festivais maiores, no caso, congressos, podem participar até 12 (doze) duplas, ficando para a final as primeiras três duplas classificadas em cada uma das duas primeiras noitadas.
Festival é, portanto, a cantoria moderna, que sai do ambiente rústico dos sertões para ocupar espaço nos clubes, teatros e ginásios esportivos dos grandes centros. É a fase de urbanização da cantoria.
Surgimento
O festival de cantador, evento que hoje acontece com freqüência, vem de longe. No entanto, não se pode afirmar quando se deu o primeiro festival no Brasil, mas a literatura registra que, no ano de 1948, Recife realizou o Primeiro Festival de Cantadores do Nordeste.
Também há informação de que em 1960, no Pacaembu, em São Paulo, ocorreu o Segundo Congresso Nacional de Trovadores e Violeiros, quando o cego Aderaldo, do Crato, foi eleito o Rei dos Trovadores.
No Cariri, o primeiro festival de poesia se deu em 1.968, na cidade de Juazeiro do Norte, intitulado Viola de Ouro, e reuniu cantadores dos diversos estados nordestinos.
Na atualidade, os festivais acontecem quase toda semana nas diversas cidades nordestinas, na sua maioria, com apoio das secretarias de culturas dos municípios, que procuram enriquecer suas atividades culturais.
Promovente
Ocorre muito de cantador radicado em determinada cidade promover, com apoio do comércio local, festival de viola. Também, como já dito, acontece de o evento ter a promoção da secretaria de cultura do município, ou mesmo de um apologista influente.
Os festivais acontecem mais por ocasião em que os municípios comemoram sua emancipação política e, para festejar a data, traçam programação festiva incluindo o encontro de cantadores, geralmente é o que se chama “Semana do Município.
Escolha das duplas
Forma-se uma comissão organizadora que se encarrega de escolher os cantadores para que eles, entre si, procurem-se formar duplas, como melhor acharem conveniente. Essa comissão também se encarrega de organizar o local do evento e receber os cantadores convidados que vêm de fora. Essa mesma comissão é quem também se encarrega de convidar os membros para composição da mesa julgadora, que devem ser, sem exceção, apologistas, pessoas conhecedoras da cantoria.
Regras gerais
Material
O material de mesa pode ser elaborado pela própria comissão organizadora ou por pessoa por ela escolhida. O elaborador de material tem que ser poeta, isto porque os assuntos e os motes a serem incluídos no material precisam ser de boa qualidade, com riqueza de rima, métrica e conteúdo.
O material produzido é distribuído em envelopes, tantos quantos sejam as duplas de cantadores. Antes do início do festival, faz-se o sorteio para se conhecer a ordem de apresentação das duplas. Os envelopes serão sorteados entre as duplas, à medida que forem as mesmas se apresentando.
A produção do material requer responsabilidade pelo seu sigilo, pois não pode vazar informação das tarefas para os cantadores que irão concorrer.
Cada envelope contém uma folha com o material que se resume em uma sextilha, um mote em sete, um mote em dez e um gênero de cantoria. Cada dupla tem 05 (cinco) minutos para apresentar cada estilo. Valem pontos as três primeiras modalidades, enquanto o gênero é apenas para exibição. Julga-se a dupla e não o cantador isolado, considerando para os resultados o total de pontos obtidos no material. A nota para cada modalidade oscila entre 05 (cinco) e 10 (dez) pontos.
Mesa julgadora
A mesa deve ser composta por 05 (cinco) ou até 07 (sete) membros, com um presidente, que dirime dúvidas e se encarrega de totalizar os pontos e preparar o resultado final para divulgação.
Todos os membros da mesa julgadora devem ser poetas, conhecedores da cantoria, uma vez que estão ali para, de forma imparcial, julgar a rima, a métrica e a oração dos versos de cada dupla.
O resultado geralmente é divulgado pelo presidente da mesa, ou por uma pessoa da platéia à escolha da comissão organizadora, como um gesto de prestigiá-la.
Os troféus geralmente são entregues aos vencedores por autoridades presentes ao evento, ou por patrocinadores que ali se encontrarem, tudo a critério de quem organiza a festa.
O cantador da noite
É o cantador escolhido pela platéia, no final do festival, como o melhor da noite. O apresentador do festival vai chamando o nome de cada um cantador e pede os aplausos da platéia para cada um deles. Aquele que for mais aplaudido é o campeão. O título de cantador da noite pode recair sobre um repentista que não fez parte das duplas vencedoras.
Importância para o cantador
Vantagem
Divulga o cantador e lhe traz status. O cantador que participa de festival torna-se mais conhecido e divulgado, além do cachê que recebe pela apresentação.
Hoje, os festivais ficam gravados em VHS, CD e até DVD, para serem comercializados.
Desvantagem
Infelicidade do momento. Muitas vezes o momento é perverso com o improvisador, é o chamado o momento infeliz que se representa contra o talento do poeta. Isto pode ocorrer até pela pouca sorte de ser sorteado com um material com o qual não esteja familiarizado. Aí pode fazer uma apresentação não muito boa e isto ter uma repercussão, naquela localidade, que pode refletir indiretamente e de forma negativa na sua vida profissional.
Contudo, achamos que o festival é muito importante para o cantador e que ele deve fazer esforço para participar sempre de todos que lhe forem possíveis.
Curiosidades da cantoria
• Cantoria tem na sua história algo que deve ser visto como curioso, podendo-se registrar como tal:
• A deixa tem autoria do cantador paraibano, Silvino Pirauá Lima. Pirauá, que foi também criador do martelo agalopado, faleceu em 1913, sem ver prosperar sua inovação. Somente em 1926, em acalorado confronto entre Severino Pinto e Antônio Marinho, na Vila da Prata, no município de Monteiro, estado da Paraíba, foi que o uso da deixa teve sua marca inicial.
• A deixa antiga, de inspiração na literatura portuguesa, tinha por regra iniciar a estrofe seguinte com a mesma palavra com a qual terminou o último verso do companheiro.
• O poeta baiano, Gregório de Matos Guerra, teve alguma influência no repentismo nordestino, pois ao deixar a Universidade de Coimbra, onde se bacharelou, fez versos de protestos à direção daquele estabelecimento de ensino.
• Agostinho Nunes da Costa foi o primeiro poeta popular conhecido no interior nordestino, tronco ascendente de várias gerações de repentistas, inclusive do trio de cantadores, os irmãos Batista. Foi o pai de Antônio Hugolino Nunes da Costa e Nicandro Nunes da Costa.
• A viola é um instrumento de caráter onomatopaico, isto é, emite som que parece com a sua forma.
• Entre, alguns poetas, ainda se preservam algumas superstições: Diz-se que a viola sofre a influência da lua. Na lua nova não se guarda a viola afinada, porque ela pode ficar corcunda, entortar e rebentar as cordas.
• Madeira para viola deve ser cortada nos meses que não contêm “r”. maio, junho, julho e agosto, a no minguante da lua para nunca apanhar caruncho.
• Há um certo consenso entre os cantadores – que o repentista que se preza não carrega a viola de baixo do braço, e sim, na mão.
• A viola surgiu depois da rabeca medieval e antes da atual família de violinos. É possível que tenha sido o primeiro instrumento de corda que o Brasil conheceu, importado de Portugal. Os Jesuítas a empregava nos seus trabalhos de catequese junto ao pandeiro, tamborim e a flauta de madeira.
• Apenas três cantadores do passado não faziam uso da viola: Inácio da Catingueira e Fabião das Queimadas, que utilizavam o pandeiro; e o Cego Aderaldo, que utilizava a rabeca.
Pedro Ernesto Filho
Enviado por Pedro Ernesto Filho em 14/09/2008
Alterado em 04/05/2013